A Engenharia era a sua tradição de família, mas surpreendeu-a optando por Medicina. Em boa hora, se sentiu influenciado pelo Prof. Jorge Mineiro (pai), por quem tinha uma admiração enorme. Graças a si, hoje, aos 63 anos, sente-se um homem realizado e orgulhoso da carreira profissional que construiu.
No sentido lato, para João Cannas ser médico significa “pôr a ciência ao serviço do ser humano”. Algo que faz diariamente com dedicação e ética. Define-se como uma pessoa de sentimentos, o que, por vezes, dificulta esta sua missão. Não é fácil gerir a tríade ética, ciência e sentimentos humanos. Porém, acredita que com bom senso tudo é possível.
“Quem sou eu para julgar?”, do Papa Francisco, foi o último livro que leu e que vem, precisamente, ao encontro deste tema. “Olho para o mundo com abertura. É preciso não confundir ética com preconceito, mas não faço concessões de natureza moral. Gosto de refletir sobre estes temas”, afirma o cirurgião de coluna.
João Cannas esteve envolvido na fundação da SPPCV, em 2003/2004, tendo sido o seu primeiro presidente durante três anos.
Quais as necessidades que, em 2003, levaram à fundação da SPPCV?
João Cannas (JC) – Não usaria o termo “necessidades”, mas sim uma forte ambição profissional. À época vivia-se uma grande separação entre ortopedistas e neurocirurgiões, os grandes protagonistas da cirurgia da coluna vertebral, que se encontravam também separados dos restantes intervenientes no tratamento da patologia da coluna: reumatologistas, fisiatras e imagiologistas.
Não se partilhavam informações, como seria do interesse para o desenvolvimento do conhecimento! E não se tratava de concorrência entre colegas, que até pode ser saudável, mas sim de uma espécie de antagonismo inconciliável.
Era praticamente impossível um ortopedista colocar uma questão sobre patologia da coluna vertebral a um neurocirurgião e vice-versa. Esta situação impressionava-me, porque reconhecia haver complementaridade no conhecimento das duas especialidades.
Nunca quis ser funcionário público e por isso, livre dos seus condicionalismos, tive a oportunidade de fazer estágios no estrangeiro desde muito cedo, quando sentia que isso era fundamental para a minha formação. Logo percebi, ainda muito jovem, que, em outros países existia um movimento que aproximava ortopedistas e neurocirurgiões que já cooperavam e discutiam entre si.
Naquela altura, viviam-se grandes mudanças nesta área, sobretudo em termos de tecnologia que se encontrava em grande evolução. Assisti à primeira reunião informal da Sociedade Europeia de Coluna em Zurique e mais tarde, em Istambul tive o privilégio de, à época, partilhar as grandes mudanças de pensamento e dos conceitos sobre as doenças da Coluna
Em Portugal, com uma série de colegas do Porto, de Coimbra e de Lisboa, consegui transmitir a ideia da sociedade europeia e instilar a vontade de fundar uma Sociedade nacional, até com um âmbito mais abrangente, que reunisse ortopedistas e neurocirurgiões, mas também especialidades não cirúrgicas, como a Medicina Física e de Reabilitação, a Reumatologia e a Imagiologia.
A SPPCV foi fundada em 2003, na sequência de sucessivas reuniões que ocorreram, a maior parte delas em Coimbra, mas foi apenas no início de 2004 que concretizámos o projecto.
A primeira assembleia-geral foi muito participada. Estiveram presentes colegas do país inteiro, uns para participar entusiasticamente, outros para tentar demolir a iniciativa. Foram momentos difíceis e ainda comprei alguns problemas, sobretudo com colegas mais velhos que temiam a mudança e recusavam participar nela. Mais tarde terão reconhecido o erro e mudaram a sua atitude.
Mas o entusiasmo pela ideia foi partilhado por muitos colegas nacionais, a quem sempre fiquei a dever o seu apoio. A criação da SPPCV foi um feito que se deveu a todos eles. Nós, a primeira geração, tivemos a coragem de ir contra a inércia instalada e conseguimos realizar muita coisa importante para o desenvolvimento inicial da SPPCV cujo primeiro Congresso Nacional, muito bem sucedido, ocorreu em Outubro de 2004 em Lisboa, já depois da primeira reunião internacional em Junho, também em Lisboa e coordenada pelo Prof. Jorge Mineiro, dedicada ao tema Low Back Pain in Sports em que participaram convidados de enorme prestígio.
Quais as conquistas que destaca?
JC – Iniciámos os contactos da Sociedade com os nossos pares estrangeiros, sobretudo com os brasileiros. Em resultado disso, a revista da Sociedade Brasileira de Coluna/Columna passou a ser a nossa revista oficial, ligando-nos ao eixo Ibero-Latino-Americano, o que nos permitiu mais tarde, incrementarmos o relacionamento com os colegas de Espanha e da Sociedade Europeia, que atualmente dá frutos e é muito importante.
A primeira geração de direção a que presidi, trabalhou também nas bases da formação curricular cujo primeiro esboço foi apresentado e discutido na Spine-Week no Porto, em 2004, com o apoio de todos, cujos nomes seria demasiado exaustivo citar, mas de que não posso deixar de destacar o Prof. Rui Vaz pela sua prestigiosa participação.
Mais tarde em 2009, devido ao meu interesse pela formação, o Dr. Nuno Salema Reis, então Presidente, incumbiu-me de representar a SPPCV na primeira reunião da European Spine Foudation que teve lugar em Varsóvia e onde foi aprovado o financiamento do projecto de formação curricular do Cirurgião Europeu de Coluna Vertebral, constituído por cinco módulos.
No Congresso da Eurospine no Ano seguinte em Lyon tive a honra de uma vez mais representar a nossa Sociedade no painel Education side-meeting e participar no Kickoff, assinando o respetivo protocolo.
Isso facilitou mais tarde a nossa participação no programa formativo europeu com um desses módulos partilhado com os nossos colegas espanhóis, cujo curso foi implementado durante a presidência do Dr. Álvaro Lima e ocorre todos os anos alternadamente entre Madrid e Lisboa.
Hoje a SPPCV é membro ativo e participa dentro do contexto da Sociedade europeia.
A semente foi bem lançada, acolhida e desenvolvida, com o mérito de todos os que nela participaram. Mas não seria justo se não mencionasse com muita gratidão o Dr. Rui Pinto que me sucedeu, aceitando o desafio de revigorar a SPPCV, na altura desgastada pela fadiga dos três primeiros anos de existência inicialmente muitos intensos. A ele, aos que lhe sucederam e muitos outros, ficamos a dever o seu actual sucesso
A fundação da SPPCV trouxe muitos benefícios para o tratamento da patologia da coluna vertebral, em Portugal?
JC – Muitos! Por tudo o que acabei de dizer, mas não só! As últimas duas Direcções têm trabalhado muito bem em termos de Comunicação. Independentemente do aspeto científico e da relevância que o mesmo tem no desafio interpares e na formação dos internos, é também muito importante saber comunicar com o público.
Os médicos têm de saber partilhar o conhecimento científico com o público, traduzindo o que realmente é importante na área da prevenção, alertando para as principais patologias e suas soluções terapêuticas. Também, este aspeto é muito edificante e tem sido muito bem cuidado pela atual Direção presidida pelo Dr. Miguel Casimiro e pelo dinamismo do Dr. Jorge Alves.
Os desafios têm-se mantido, desde a criação da SPPCV?
JC – Têm sofrido upgrades! Os princípios são os mesmos: desenvolver uma atividade científica que reúna os principais intervenientes nas diversas áreas. Temos áreas muito específicas de cirurgia minimamente invasiva, técnicas de abordagem por vias de abordagem muito diversificadas e complexas, técnicas e estratégias para o tratamento das deformidades que se atualizam permanentemente.
Além disso, acompanhamos o extraordinário desenvolvimento do tratamento multidisciplinar dos tumores. Existem muitas áreas. A coluna vertebral “é um mundo” e a SPPCV tem vindo a atender a esta necessidade e a estimular a formação e a diferenciação dos seus sócios.
O seu espírito fundador mantém-se, mas funcionalmente a Sociedade tem vindo sempre a melhorar. Como já referi, o trabalho que tem sido feito na área da comunicação é fantástico. Também neste aspecto a Sociedade está a ir mais longe do que eu inicialmente poderia antever. Mas os tempos são outros e os recursos tecnológicos estão a ser bem usados. Tem vindo a evoluir bem e fico muito contente por isso.
Formou-se, em 1986, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, e é ortopedista, desde 1994, tendo feito o seu internato da especialidade no Hospital de Santa Maria. Qual o balanço que faz da sua carreira profissional?
JC – Sinto-me realizado. Um dos objetivos da minha vida em termos de realização pessoal e profissional, foi a especialização. Tive o privilégio de começar desde muito cedo a fazer apenas cirurgia da coluna vertebral e portanto, nunca pratiquei verdadeiramente Ortopedia Geral depois da minha formação no Internato.
Sem dúvida, a especialização foi um marco fundamental e a fundação e a presidência da Sociedade foram corolários disso. Tenho muito orgulho em ter estado envolvido na criação da SPPCV e no seu êxito.
A nova geração de cirurgiões de coluna está muito mais bem formada e muito mais dialogante e participativa. Isso é encantador. É exatamente esse o propósito desde a sua fundacão.
Além disso, tive outros desafios de carreira muito marcantes. Após a estabilização do início da nossa prática clínica, o Prof. Jorge Mineiro (filho) e eu, ambicionávamos inovar na organização das nossas atividades e trabalharmos em conjunto. Disso resultou em 1996 a formação de um grupo de ortopedistas, subespecializados nas diferentes áreas da ortopedia, tendo-nos estabelecido inicialmente no hospital de S.Louis.
Mais tarde, fomos convidados pelo grupo CUF, aquando da fundação do Hospital Cuf Descobertas. Aceitámos com entusiasmo, tendo em conta o prestígio da instituição e a dimensão ambiciosa do projeto.
Começámos por ser sete médicos e actualmente somos 29, organizados num serviço que funciona como tal, sob a coordenação do Prof. Jorge Mineiro e departamentado, com diferentes responsabilidades: formação, desenvolvimento da atividade clínica e investigação nas diversas áreas do aparelho locomotor.
Todos temos tido participações importantes, tanto a nível nacional, como internacional. Temos atualmente colegas no Serviço em lugares de grande destaque ao mais alto nível internacional, algo de que muito me orgulho.
Sou por isso um homem de sorte e muito grato à vida. Tenho uma família que adoro e tive uma carreira profissional muito recompensadora, com bons desafios, algumas inquietações e contrariedades, mas essencialmente muito bem-sucedida e com a alegria de exercer a profissão com prazer dedicado e ser reconhecido como competente.